"...
O tio Jacinto contemplava, triste, o pé de roseira quebrado, rosnando:
— Corja! Quem!? Vão lá saber quem! Há-de ser a mesma cambada que me vinha roubar as batatas! Se eu pilho um!
— Então você plantava batatas no cemitério, homem?
— Então, porque não, Sr. Arturzinho? Mas lá o Sr. Alves, o da Câmara, começou a implicar. Disse que até era pecado. Pecado é tirar a um pobre o bocadinho do seu negócio. Ricas batatas; também lhe digo, não há terra de semeadura como isto. — E com um gesto largo indicava o cemitério: — É tudo o que V. Sª lhe plante. Está abarrotadinho de estrume!
..."
[A Capital, Eça de Queirós, 1925]
O Tio Jacinto sem perceber chavelho de química ou de pedologia sabia o que era preciso para repor a fertilidade da terra. Como todos os agricultores orgânicos seus contemporâneos tinha consciência que a fertilidade da terra dependia, em exclusivo, da incorporação no solo de matéria orgânica, viesse ela de cadáveres em decomposição, do enterramento de infestantes, dos resíduos das culturas, da nitreira ou da loja das vacas. O Tio Jacinto punha prática um dos princípios fundamentais de gestão da fertilidade da terra, formulado nos meados do séc. XIX, mais precisamente em 1848, o ano da comuna de Paris e do manifesto comunista, por Justus von Liebig: "[para manter a fertilidade da terra] tudo o que é extraído do solo tem que ser devolvido na sua totalidade».
Na agricultura pré-industrial a disponibilidade de nutrientes, sobretudo de azoto, era a maior limitação da produtividade agrícola. O herói do A Capital, o Arturzinho, e o coveiro Tio Jacinto vivem em Ovar. Para repor as perdas de azoto os ovarenses da altura dispunham de um extraordinário adubo: os moliços extraídos da ria de Aveiro. Como nos demais sistemas de agricultura orgânica, a gestão da fertilidade da terra do solo passava inevitavelmente pela reciclagem dos nutrientes, por exemplo pela compra de estrumes vendidos de porta em porta, por gente cuja profissão era recolher as bostas de vacas pelos caminhos rurais.
Passaram mais de cem anos desde que Eça de pena na mão desenhou personagens tão notáveis como Arturzinho, Gonçalinho ou Jacintinho, e discorreu como mais ninguém sobre a sociedade orgânica do Portugal do Séc. XIX.
Desconfio, porém, que sabia mais Eça de fertilidade da terra do que a larga maioria das gentes que hoje habita o país.
Não me surpreende.
Os nossos estudantes saem dos liceus a saber tudo sobre o ciclo de Krebs e demais parafernálias bioquímicas da modernidade, mas não fazem a menor ideia de que o solo e as plantas são reactores que obedecem às leias da química e da física que controlam uma reacção química simples num tubo de ensaio.
Se às plantas lhes faltam a comida e a luz param de crescer e senescem. E o seu destino, tal como o nosso, é mineralizarem-se no solo, num processo que os cientistas eufemisticamente apelidam de amonificação, e fecharem os ciclos de nutrientes. Foi neste novelo de ciclos de matéria e energia que se acomodou a agricultura, uns milhares de anos antes do Tio Jacinto.
Um post muito interessante!
ResponderEliminarA reciclagem é sempre vital.
Excelente post, é sempre um prazer lê-los.
ResponderEliminarSó uma pequena rectificação histórica, esperando não ser pedante, a Comuna de Paris foi em 1871; de facto grande parte das revoluções em França iniciaram-se em Paris, a de 1848 levou à queda da monarquia e à instauração da 2ªRépública. Esta data corresponde também ao processo da revolução industrial neste país, acompanhado por alterações das práticas agrícolas e mutações demográfica.
Obrigado Ana, tens razão. Escrever de cor tem destas coisas. Não vou corrigir o texto. Os visitantes do blogue certamente lerão o teu comentário.
ResponderEliminarÉ sempre bom ler um pouco de Eça de Queirós!!
ResponderEliminarExcelente. Na realidade, as gafanhas resultantes da extraordinária deposição de areias durante a pequena idade do gelo foram tornadas férteis pela deposição de moliço da ria (Zoostera, Ruppia e Enteromorpha), das algas marinhas e do junco e bunho cortado no Baixo Vouga Lagunar.
ResponderEliminarBravo, Carlos. Muito bom.
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