No passado mês de Junho, num leito de cheias cascalhento de um pequeno rio transmontano, longe de tudo e de todos, herborizei esta planta:
«A linha de água está pouco perturbada e as encostas sobranceiras revestidas por abundantes azinhais climácicos. A planta deve ser rara!», pensei então. Entusiasmado, corri para o herbário; segui as chaves das Floras e observei ao pormenor os meus exemplares herbário de brassicáceas com frutos compridos (silíquas). O resultado era sempre o mesmo. «Não pode ser! O sítio é perfeito para plantas invulgares!». Recusei-me a aceitar. Enviei uma foto a um amigo botânico; o veredicto foi rápido e claro: Sinapis arvensis, a mais do que frequente mostarda-dos-campos. Que desilusão! Não tinha, afinal, encontrado uma espécie nova para Trás-os-Montes, e muito menos para Portugal.
Este relato pequenino pouco interesse tem; não chega sequer para um blogue descomprometido de divulgação botânica. Porém estimula a imaginação, oferece uma razão para recuperar, ainda brevemente, uma das especulações preferidas da comunidade fitossociológica: na paisagem pristina, há mais de 5000 anos, qual era o habitat das espécies que hoje preenchem os nossos campos e matos? Por outras palavras: Onde estavas tu, planta daninha, arbusto enfadonho, antes do Neolítico?
Estas dúvidas não têm uma resposta simples e objectiva. Vai-se especulando, vai-se cambiando de ideias com novas observações, com pequenas epifanias. Cada planta é um caso, e um caso por natureza insolúvel.
De qualquer modo, a dita Sinapis arvensis (Brassicaceae), o Pinus pinaster (Pinaceae) «pinheiro-bravo» e o Cistus ladanifer (Cistaceae) «esteva» numa escapa, a Erica australis (Ericaceae) «urze-vermelha» encavalitada numa crista quartzítica, a Spergula arvensis (Caryophyllaceae) que germina às primeiras chuvas num mato recentemente ardido ou o Cynodon dactylon (Poaceae) «grama» a perfurar um exíguo mouchão de areias acumulado nas margens de um rio de montanha, estas e muitas outras plantas, fazem-me suspeitar da sua raridade, ou, pelo menos, infrequência nas paisagens pristinas.
O Neolítico, a agricultura, alterou a ordem das coisas: o que era raro volveu abundante e o comum incomum. Com muitas excepções, suponho.
A conservação da natureza, como muito bem dava a entender o Luís Moreira num comentário a este post, está impregnada pelos modelos de paisagem das sociedades orgânicas tradicionais, que sobreviviam, mal, muito mal, a malhar nos ecossistemas naturais, numa luta diária para recuperar ou colher o átomo de azoto e de fósforo e com ele fazer a seara e a horta, e compensar à justa a enorme despesa energética dos corpos retorcidos pela enxada e pela gadanha.
Este referencial em cima do qual raciocinamos a conservação da natureza, no fundo, esta ideologia, não parece lá muito lógica.
Bom dia Carlos!
ResponderEliminarÉ um tema de arrepiar este.
Compreendo a tua visão, mas mesmo assim tenho algumas reservas e não sei bem o que pensar sobre o que é mais acertado. Tenho reservas porque quando visito um daqueles olivais tradicionais da região de Beja-Serpa-Safara, a quantidade de espécies estranhas, invulgares e raras que só aparece nesses olivais é tão grande que me custa muito pensar em não conservar esse sistema tal como está; isto é, com lavras ocasionais pouco intensas e plantação de trigo ocasional. Nunca vi tanta diversidade de espécies em nenhum outro habitat, com a "vantagem" de que é uma diversidade feita por espécies muito pouco comuns, e não as espécies ruderais, arvenses e segetais que estamos habituados a ver nas searas e montados. Claro que o tipo de solo nessa região é um factor crucial para que estes olivais sejam tão diferentes, mas a gestão tradicional faz também muita diferença.
É um tema polémico, e não gosto muito de opinar sobre temas polémicos. Compartilho da tua opinião nalguns casos, mas noutros não - p.ex., de facto, não sei se faz sentido haver tanta coisa à volta da conservação do montado tal como ele é (com gado, etc.), visto que é um sistema, a meu ver, um pouco pobre em termos florísticos (mas claro que é muito "típico" e esteticamente apelativo!). No entanto, acho que fazia muito sentido a conservação dos olivais tradicionais tal como são. É uma diversidade sem paralelo.
No panorama da conservação, o que tem acontecido é pegarem na Linaria ricardoi como símbolo, e tudo se faz à volta desta planta, é uma espécie de lince vegetal. Claro que não me agrada essa perspectiva altamente redutora, mas a verdade é que a L. ricardoi está associada intimamente a este habitat, logo, ao conservarmos esta espécie, estamos a conservar muitas outras espécies que são tão ou mais raras que a própria Linaria. Por isso, em termos práticos, até que funciona este tipo de marketing!
Não sei o que achas sobre este assunto, agora na óptica de outro habitat... se calhar nem estavas a pensar neste caso quando abordaste o assunto!
Estou seriamente preocupado com o futuro destes olivais tradicionais, e cada vez que visito outro, mais preocupado fico. Não tenho dúvidas que perderemos muitas espécies se não mantivermos este habitat semi-natural.
Como normalmente digo, estes olivais são absolutamente brutais.
Um grande abraço!
Miguel
Caro Miguel
ResponderEliminarMas que espécies raras são essas que aparecem nos olivais tradicionais da região de Beja-Serpa-Safara, para além da L. ricardoi, evidentemente?
Ficamos com grande curiosidade, até porque é uma região pouco visitada pelos botânicos (embora exista, evidentemente o excelente trabalho do Prof. Pinto Gomes acerca da Serra de Ficalho).
Essas espécies raras seriam certamente um tema fascinante para vários posts aqui neste blog!
Um grande abraço!
ZG
Excelente post. Pois eu também já tive a mesma experiência que tu nos leitos de cheia do rio Minho. E ee o João Honrado tivemos exactamente a mesma reflexão. Um grande abraço.
ResponderEliminarBoas, ZG!
ResponderEliminarNão falei de nomes, com efeito! Temos visitado várias vezes estes olivais ultimamente, e aparecem sempre surpresas. Eis exemplos de algumas espécies que considero raras/invulgares/(não sei que palavra usar), pelo menos regionalmente... Linaria hirta, Biarum mendax, Mandragora autumnalis, Echium boissieri, Phlomis herba-venti, Salvia argentea, Serratula barrelieri (a confirmar)... creio que a própria Cynara tournefortii também possa aparecer por esses olivais, uma vez que o habitat é semelhante. Mas existe uma data de outras coisas não assim tão raras mas o quanto baste para merecerem destaque! Adonis annua, Iris planifolia, Scorzonera crispatula, S. angustifolia, Prangos trifida, por exemplo. E não me lembro de mais para já, mas certamente que haverá.
O que dá o valor a estes sítios é que aparecem muitas destas espécies invulgares todas juntas, e portanto, como um todo, é espectacular. Esta conjunção tão preciosa não acontece em mais nenhum habitat que eu conheça.
Sim, dá vontade de escrever sobre todas estas plantas em particular!
Um abraço!
Excelente resposta!
ResponderEliminarObrigado, Miguel!
Um abraço!
Muito interessante este post, sobre a bela e saborosa mostarda, assim como toda a discussão subsequente!
ResponderEliminarOlá Miguel
ResponderEliminarQuatro explicações plausíveis para a importância dos olivais que referes, e de outros habitats de origem antrópica, na conservação de elementos raros e ameaçados da nossa flora: 1) são um habitat secundário (o habitat primário poderiam ser, e.g., solos perturbados por movimentos de massa ou pelas fossadas dos javalis); 2) as plantas raras que abrigam são de especiação recente (e portanto a eles adaptadas); 3) estas plantas são de chegada recente, pela mão do Homem ou não, vindas de habitats análogos, circunscritos a outros territórios. A hipótese 1, que informa o teu post, tem consequências, ramifica-se noutras duas: a) o habitat primário é, actualmente, insuficiente para garantir a viabilidade das populações das espécies de interesse conservacionista, o que torna a persistência do olival, tomado como exemplo, indispensável; b) as espécies-alvo são naturalmente raras e as suas populações transientes, o olival de pouco serve e a pressa em sustentar usos do solo emana de uma leitura acrítica da literatura da biologia da conservação animal.
Como não sabemos o que a Linaria ricardoi e outras plantas que tais precisam para persistir, os seus habitats actuais merecem atenção e empenho por parte dos institutos e associações de cidadãos com interesses na conservação. Venham o olival e o escarificador: o princípio da precaução a isso obriga.
No entanto, quanto mais vivo e leio mais me apercebo que a compatibilização da agricultura com a conservação da natureza tem limites, e que os sistemas de agricultura tradicionais podem ter um impacto na conservação da flora igual ou superior às agriculturas mais intensivas. Cada caso é um caso, como referi no post. Por isso, o paradigma dominante – o da indispensabilidade da actividade agrícola na conservação da Natureza no mediterrânico – não pode servir de referência para desenvolver políticas de conservação.
Miguel fazes falta no blogue.
Citando CA:
ResponderEliminar«Miguel fazes falta no blogue.»
Sem dúvida! E esperemos que também aqui apareçam essas fascinantes raridades dos olivais do Sul!
Olá Carlos
ResponderEliminarObrigado! Não tenho de facto participado activamente no blogue, embora tenha sido um assíduo leitor. Cuido que sabes o porquê da falta de tempo ;-)
Concordo perfeitamente contigo agora - cada caso é um caso, e jamais me atreveria a defender a ideia da "indispensabilidade da actividade agrícola na conservação da Natureza no mediterrânico". Mas o princípio da precaução, como dizes, é a nossa solução de recurso em muitos casos, uma vez que ainda não sabemos o suficiente.
No caso dos olivais tradicionais, parece-me que se trata exactamente do que dizes "o habitat primário é, actualmente, insuficiente para garantir a viabilidade das populações das espécies de interesse conservacionista". As espécies que neles habitam seriam em tempos muito mais raras do que agora, uma vez que procuravam nichos transitórios e raros, criados pelas forças naturais. Isso coloca a questão - será que seria seguro reverter a essa situação? Com a alteração da paisagem que existe, os processos naturais que geravam esses nichos transitórios já não actuam. O fogo, por exemplo. Os mosaicos de vegetação natural que sobram são pequenos demais para que ao nível da paisagem haja auto-sustentabilidade destas plantas. Por isso creio que em muitos casos não temos outra solução senão manter alguns dos usos tradicionais. Essas espécies que lá vivem são os sem-abrigo.
Isto aplica-se no mediterrâneo europeu... mas nos "outros mediterrâneos" a coisa pode ser bem diferente. Espero arranjar um tempo para falar um pouco de um "outro mediterrâneo" acompanhado de umas belas fotos..! ;-)
E também de algumas dessas "raridades dos olivais do Sul"! Fica desde já um link para um pequeno texto do Biarum mendax, mas nada que já não tivesse dito.
p.s. outro caso paradigmático é o do Drosophyllum lusitanicum!
Muito bom o «pequeno texto do Biarum mendax»!
ResponderEliminarDelicadamente linda!
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