terça-feira, 22 de setembro de 2009

Orgulho nacional australiano colado com goma arábica

Racosperma mearnsii (De Wildeman) Pedley (foto: C. Aguiar)

Soube de uma séria polémica internacional envolvendo a nomenclatura científica das acácias através de colegas mais envolvidos na Botânica tropical e que julgo não se importarem que divulgue esta estória. O Carlos também me incitou a escrever esta nota sobre o assunto.

Vejamos. Existe evidência taxonómica de o género Acacia Mill. ser, afinal, constituído por cinco entidades genéricas distintas, cada uma delas merecendo a categoria de género autónomo. Nestes casos, o Código Internacional de Nomenclatura Botânica (CINB) prevê que quatro novos nomes deverão ser publicados para os géneros resultantes da divisão do anterior, sendo obrigatoriamente retido o nome do género dividido para um dos resultantes . O nome do género ora dividido é - por maioria de razão - retido por aquele que inclui a espécie que é o tipo nomenclatural do género. Assim, neste caso, Acacia Mill. seria o nome legítimo do género que inclui Acacia nilotica (*): o tipo nomenclatural de Acacia Mill antes da divisão. É uma espécie africana e do sub-continente indiano e de onde se extrai a goma arábica.

Expectavelmente, as espécies africanas (e uma europeia: Acacia radianna, de Gibraltar) continuariam a pertencer a este género, agora incluindo menos espécies do que antes, mas sem alteração nomenclatural. Outros nomes - seriam aplicáveis aos outros quatro novos géneros. Em particular, às acácias ou 'watlles' australianas aplicar-se-ia o nome genérico Racosperma Mart., proposto já por Karl Martius em 1835.

Acontece que um grupo de botânicos australianos quer sonegar o nome Acacia Mill. para a sua terra natal, para ser aplicado estritamente às acácias australianas. Para tal, socorreram-se habilidosamente de dois artigos do CINB que possibilitam a rejeição do tipo nomenclatural em vigor (A. nilotica) e eleição de um novo tipo (um neotipo) ... desta feita australiano. Tal possibilidade está prevista no Código, para quando o exemplar-tipo se perdeu, desapareceu, não é, ou é ambiguamente indicado sendo impossível de determinar com certeza de entre o material original do autor que descreve o táxone. (Ou ainda, como é o caso de Acacia Mill, ser escolhido a posteriori por outro autor consistentemente com a descrição e desejavelmente entre o material original do autor que publicou o nome - chama-se neste caso um lectotipo). Ou por fim, outra razão que o o CINB prevê para escolher um neotipo é se se considera que manter o antigo traduz alguma séria inadequação taxonómica- o que é obviamente subjectivo e sempre discutível. E os australianos fizeram-no: publicaram uma rejeição do lectotipo legítimo de Acacia Mill.: A. nilotica, que tinha sido designado pelos americanos N. L. Britton et A. Brown em 1913 e elegeram como neotipo uma acácia australiana - apropriando-se assim com o nome antigo Acacia apenas para si e para a Austrália e corrompendo em absoluto o conceito original do género Acacia. Isto é, relegando as acácias africanas para outros géneros. A proposta australiana, a ser seguida, implicará a transferência de género - e mudança de nome - de todas as acácias africanas. O motivo principal evocado para este golpe de bastidores pouco leal, foi o argumento de que a Austrália tem a maioria das espécies (são de facto muitas centenas). Imediatamente se levantou um coro de protestos internacional liderado pela África do Sul e a meu ver com toda a razão.

Prefigura-se actualmente uma votação no próximo Congresso Mundial de Botânica, motivada por este caso, para tentar emendar os artigos do código e liminarmente rejeitar esta neo-tipificação. O motivo principal é que tal precedente perfigura uma Caixa de Pandora nomenclatural, pois a partir de agora qualquer argumento servirá para rejeitar tipos e alterar quase a bel-prazer nomes cujo conceitos demoraram muito tempo a estabilizar e à custa de muito sangue suor e lágrimas de várias gerações de botânicos.

Claro é que o CINB em vigor deve ser sempre respeitado, mas sob pena de voltarmos ao caos nomenclatural pré-lineano. E como todas as leis, têm o seu espírito e a sua letra, esta leitura australiana é um claro abuso dificilmente tolerado. Em suma, a pretensão dos australianos até pode ser válida de acordo com o CINB, mas que é profundamente desleal, é.

Como nota de rodapé e prevendo um mais limitado coro de protestos desta vez em Portugal - entre os profissionais da floresta -pelo incómodo causado e porque resistimos sempre ás mudanças - espero mesmo assim, que caia em saco rôto a proposta australiana. Assim e como são todas australianas, passemos a chamar ás nossas terríveis acácias invasoras o nome de devem ter: Racosperma Mart. (Racosperma dealbata, R. melanoxylon, R. saligna, R. longifolia & etc.). Se fazem favor.

(*) Parece ainda que o nome correcto desta acacia até é Acacia scorpioides (L.) Wight. Mas é um sinónimo homotípico (tem o mesmo tipo) de A. nilotica, pelo que é, de facto , indiferente para a discussão do caso.

8 comentários:

  1. Há um livro de divulgação de um reputado autor neo-zelandês, publicado em 1999, em que as acácias australianas já aparecem sob o nome genérico Racosperma: trata-se de Exotic Trees: The Broadleaves, por J. T. Salmon. Como nunca encontrei qualquer outro livro, mesmo mais recente, que fizesse o mesmo, julguei que a mudança não tivesse pegado. Fico agora a saber por que razão não pegou, e a desejar, para bem da taxonomia, que seja um entrave passageiro.

    Em todo o caso, é curioso esse pioneirismo de um neo-zelandês em adoptar uma mudança que tanto desagrada aos seus vizinhos australianos. Andará por aí alguma rivalidade regional?

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  2. Muito interessante! Tb me parece não haver qualquer problema em passarmos a chamar Racosperma às nossas acácias!!

    ZG

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  3. Caro Paulo Araújo

    Se for ao IPNI (International Plant Name Index) que provavelmente conhece http://www.ipni.org/ as combinações das acácias como Racosperma estão já lá todas.

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  4. Curioso é o facto dos «watlles» australianos terem sido recombinados no género Racosperma por um botânico autóctone, L. Pedley (vd. IPNI), tanto quanto se consegue perceber pela suas publicações, um exímio especialista das Acacia s.l. australianas. A coisa até ficava em casa.

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  5. Voltarmos ao caos nomenclatural pré-lineano também não está mal pensado... quem sabe? talvez no futuro...

    zg

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  6. Mas, já agora, o que acontece à Acacia cyclops e à Acacia karroo, que parece que também por cá existem??
    Seré que continuam no género Acacia?
    zg

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  7. Vachellia karroo ( Hayne ) Banfi & Galasso

    Quanto à Acacia cyclops, acho que ainda ninguém se adiantou a recombiná-la. Que eu saiba.
    Cumps.

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  8. Tudo isto é muito curioso... Bom, esperemos que o futuro traga soluções para esta tão interessante problemática...
    Cumps.
    zg

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