quinta-feira, 28 de maio de 2009

Paisagem vegetal transmontana no séc. XVI

O Doutor João de Barros, um erudito quinhentista pioneiro da história e da gramática portuguesa, visitou Trás-os-Montes em 1547. Na sua “Geographia d’entre Douro e Minho e Tras-os-Montes”, provavelmente datado de 1549, oferece-nos uma das primeiras descrições da paisagem transmontana. Transcrevo três passagens daquele texto que corroboram a hipótese de uma desflorestação do interior de Portugal continental  francamente mais precoce do que é geralmente admitido.

 “Estendese esta comarca de Traslosmontes des Galiza athe o Douro e he muito montuosa e monte e terras àsperas”.

”Os monte dali [terras de Mirandela e Lamas] são muito suaves, cheios de alecrim, rosmaninho, ruda, macella, manjerona, dormideiras e outras eruas cheirosas, e muito pouco tempo ha que ali se plantàrão as primeiras oliveiras e agora ha muito azeite na terra."

 “Esta terra [Vale da Vilariça] tem mais pombas e pombais que entre Douro e Minho, e a causa he porque as muitas aruores dantre Douro e Minho as segigão em ellas os Gauioens, Açores e outras aves de rapina lhe fasem muito dano, o que não fazem tanto em Traslosmontes, que ha menos aruores.”

4 comentários:

  1. É um texto muito interessante, mas não parece ser particularmente esclarecedor... no entanto, parece evidente que o fenómeno da desarborização já será bastante antigo...

    zg

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  2. Olá Carlos, vou lançar uma leitura alternativa:
    1) Trás-os-Montes é mais "áspero", isto é, de relevo mais movimentado e clima mais seco e extremado;
    2) A oliveira começou a expandir-se em TM por alturas do Renascimento (qual a alteração nos sistemas socio-agrários da Terra Quente que terá despoletado isso? Ou foi só mesmo mais um passo na melhoria das rotinas agrícolas? [é esquisito que não tenha sido a romanização a introduzir a olivicultura em larga escala nesta região - ainda por cima com o óptimo climático a ajudar. Problemas de uma região ultra-periférica no quadro do Império?];
    3) O Entre Douro e Minho tem mais arvoredo e este é mais viçoso, albergando ecossistemas mais complexos - ora aí está uma verdade Lapalisseana, comprovável sempre que temos diferenças de precipitação média anual de 3 para 1, quaisquer que sejam as regiões contíguas...

    Seria ainda assim a região trasmontana uma região desarborizada? A resposta pode ser dada através do estudo integrado da demografia, dos sistemas económicos, da legislação (não esquecer os forais...) e da toponímia.

    Ab - JPinho

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  3. Estou de acordo com o “Anónimo”. Documentos como a "Geographia ..." devem ser interpretados com cautela. Na realidade têm um interesse meramente indicativo. Por várias razões. Não se pode fundamentar uma interpretação histórica da paisagem em três referências de carácter genérico. Os conceitos de árvore e de floresta de João de Barros são certamente muito diferente do nosso e impossíveis de descortinar. Nunca saberemos se João de Barros considerava um sardoal (azinhal) de encosta com rochedos emergentes uma floresta. Para nós é floresta, no dealbar da Idade Moderna não sei. Por outro lado, os documentos deste período expressam, frequentemente, os gostos e os interesses dos poderosos. Muitos reduzem-se a apologias do poder, como a “Descrição do Reino de Portugal” de Duarte Nunez de Leão onde, a fiarmo-nos no autor, Trás-os-Montes era uma terra fértil, de úberes prados, e assim por diante. Os solos transmontanos, definitivamente, não são férteis.
    Ainda assim, parece-me significativa a referência de João de Barros à abundância de plantas aromáticas em Mirandela. Estas plantas são características de etapas sucessionais muito regressivas. Indiciam que os montes eram cultivadas com rotações alargadas cereal-pousio e/ou submetidos a uma pastorícias de percurso com fogo. É curioso que 250 anos depois o Conde de Hoffmansegg descreve uma paisagem da bacia de Mirandela consistente com a de João de Barros. Este pequeno trecho de João de Barros, insisto, merece ser tomado em consideração.

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  4. João, de acordo, Trás-os-Montes é mais "áspero" e este facto é importante na história da paisagem vegetal regional, por dois grandes motivos (em oposição às áreas de clima temperado): a restauração dos bosques é mais lenta e o fogo é indispensável na gestão dos pastos nos solos de fisiografias não depressionárias. A restauração dos bosques após perturbação é particularmente lenta nos dois extremos altitudinais: na montanha (efeito do frio) e nas áreas de clima mais seco (como Mirandela) (efeito da escassez estival de água).
    Por razões metodológicas (disponibilidade de dados paleopalinológicos) a história da paisagem pode ser feita com mais detalhe na montanha do que nas terras baixas. Nos diagramas polínicos publicados para a Serra da Estrela e para a vizinha Serra de Sanábria (Espanha) os bosques de Querci sofreram uma regressão acelerada e inexorável na fundação da nacionalidade (Serra da Estrela) ou um pouco mais tarde (?) (Sanábria). Como o vale era funcionalmente dependente da montanha através dos movimentos de populações e animais (transumância de vale) é expectável que a regressão da floresta na montanha e nas terras baixas tenha sido mais ou menos coincidente. Esta hipótese é coerente com o facto da maioria das aldeias transmontanas se situar a cotas intermédias. Portanto, as "feridas" causadas pelo sistema milenar de pastorícia de percurso com fogo (e.g. dominância de matos pirofíticos) eram extensas no séc. XVII, aquando da visita de João de Barros.
    A história da oliveira é bem mais complexa. Em primeiro lugar parece que a sua domesticação é politópica: existem evidências que terá sido domesticada no final do Calcolítico/Bronze inicial na Península Ibérica (Terral et al., Journal of Biogeography 31, 63–77, 2004); no mediterrâneo oriental essa domesticação é muito mais precoce. Mais tarde Fenícios e Romanos redistribuíram-na pela Bacia do Mediterrâneo. À escala de Trás-os-Montes está provada a existência de villae romanas no Vale da Vilariça, por conseguinte, é expectável que há cerca de 2000 anos o sistema de agricultura cereal-vinha-oliveira já estivesse instalado em Trás-os-Montes. Na Serra de Sanábria a abundância do pólen de O. europaea aumenta no final do Império Romano e dispara em datas provavelmente posteriores à fundação de Portugal (datas não precisadas). Em resumo, cruzando a informação disponível, a oliveira cultivada já existia antes de Roma; ganha, pontualmente, importância com Roma; alastra no final do império; provavelmente a visita de João de Barros coincide com um surto expansionista da cultura em Trás-os-Montes. A expansão da oliveira poderá estar associada à consolidação de grandes magnates regionais (sabe-se que este processo foi muito tardio em Trás-os-Montes; M. F. Mauricio, Entre Douro e Tâmega e as Inquirições Afonsinas e Dionisinas, 1997) e/ou a uma integração mercantil da região com o litoral. Estou a especular porque não domino esta bibliografia.

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