quarta-feira, 19 de maio de 2010

Flora do (meta)lameiro do Poulão VII: (meta)Poa bulbosa

Os lameiros são mosaicos de comunidades vegetais organizadas ao longo de um gradiente mesotopográfico, regido pela disponibilidade de água na primavera e pelo encharcamento do solo. Os lameiros são, portanto, lameiros de lameiros, i.e. metalameiros.
Como referi num post anterior, as plantas dos habitats mais secos de lameiro geralmente são mais precoces a florir do que as plantas dos habitats de lameiro mais húmidos. Este fenómeno é particularmente evidente entre as gramíneas.

Nas cotas mais elevadas do metalameiro do Poulão floresce abundantemente por esta altura a Poa bulbosa:
Conto discorrer um pouco mais sobre a ecologia desta espécie, quando um dia escrever um grupo de postas sobre os prados naturais, ou semeados, de Trifolium subterraneum - de todas as plantas deste mundo a que mais me fascina. Para já queria chamar a vossa atenção para dois pormenores curiosos da morfologia da Poa bulbosa.
Conforme podem observar na foto, os colmos (= caule das gramíneas) da P. bulbosa apresentam um curioso engrossamento na base (daí o restritivo bulbosa). Este engrossamento deve-se à acumulação de água e amido num entrenó basal do colmo. As estruturas caulinares formadas por um ou mais entrenós alargados com função de reserva chamam-se cormos (= bolbos sólidos). Os cormos podem ser subterrâneos, ou aéreos; não preciso de explicar a diferença. Tanto os cormos como os bolbos de pequena dimensão, diferenciados nas inflorescências (e.g. Allium vineale), ou na axila de folhas (e.g. dentes de alho), são apelidados por bolbilhos.
Os bolbilhos têm um papel fundamental na propagação e dispersão da P. bulbosa. Com facilidade fragmentam-se, e são transportados, por exemplo, entre os cascos das ovelhas, e plantados no solo, dando origem a novas plantas.
Os bolbilhos são muito apreciados por porcos (bravos ou mansos) e ovelhas que os procuram activamente (com muito mais sucesso o porco do que a ovelha).
A P. bulbosa é, à semelhança de outras plantas do género Poa, uma planta vivípara. A maioria das flores, quando não todas as flores, são substituídas por bolbilhos aéreos, suspensos nos ramos da inflorescência. Em contacto com o solo, enraízam rapidamente, sustentados pelas reservas injectadas pela planta-mãe no bolbilho e pela actividade de folhas fotossintéticas (visíveis na foto).
O aspecto desgrenhado destes bolbilhos aéreos tem a sua lógica evolutiva. As pequenas folhas são rijas, e ligeiramente curvas, duas características morfológicas destinadas a facilitar a dispersão dos bolbilhos, pendentes da pelagem dos mamíferos (dispersão ectozoocórica).

A analogia subjacente ao termo vivíparo aplicado pelos botânicos à P. bulbosa é abusiva, e muito ao estilo do essencialismo biológico do séc. XVIII, e da primeira metade do séc. XIX. Os animais ditos vivíparos parem indivíduos com característica próximas dos adultos, i.e. num estadio de desenvolvimento mais avançado do que o ovo dos insectos, dos répteis, das aves, ou dos mamíferos monotrématos (nota: existem insectos e répteis vivíparos). Os bolbilhos aéreos não são sementes germinadas, mas sim estruturas vegetativas, morfologica e geneticamente idênticas à planta mãe (vd. primeira foto). Os bolbilhos aéreos são pequenas P. bulbosas suspensas no ar e no tempo, enquanto aguardam por um dispersor. Assim sendo, a P. bulbosa é uma planta de plantas: uma metaplanta, uma meta-Poa.
A analogia da P. bulbosa com os animais vivíparos só seria aceitável se existissem, por exemplo, gatos ou cães assexuados, com proliferações celulares somáticas em vez de órgãos sexuais, que no decurso da sua ontogénese felina ou canina, se diferenciassem em novos gatos, ou novos cães. Nunca vi metagatos, nem metacães clonais, de oito ou mais patas. Aliás, estou razoavelmente seguro que são uma impossibilidade biológica, porque tanto os gatos como os cães - ao contrário das plantas - são seres unitários, i.e. não têm uma estrutura modular.

Quanto mais seco o habitat da Poa bulbosa maior a quantidade de bolbilhos subterrâneos na base dos colmos, e aéreos na inflorescência. Quando a disponibilidade de água é maior, os pequenos cormos basais não se chegam a diferenciar, e maior a proporção de flores na inflorescência, i.e. maior a importância da reprodução sexuada.
A Poa bulbosa "lê" o habitat, e em conformidade modula a sua forma. Por isso, tanto coloniza prados perenes mesotróficos (lameiros), como pastagens de trevo-subterrâneo, ou afloramentos rochosos cobertos com uma delgada camada de solo. A plasticidade ecológica da P. bulbosa provavelmente é uma propriedade emergente da sua plasticidade morfológica.
Planta extraordinária, não é?

4 comentários:

  1. Metalameiro e metaplanta são expressões bonitas!
    E então a Poa bulbosa reproduz-se como as extraordinárias crassuláceas Crassula multicava e Kalanchoe delagoensis...

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  2. Metagatos e metacães tb gostei muito!

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  3. Exacto, ZG! Diz-se que o Bryophyllum (Kalanchoe) daigremontiana, entre outras espécies do género, produz gemas adventícias foliares, embora estas estruturas sejam, como muito bem dás a entender, similares aos bolbilhos aéreos da Poa bulbosa. A terminologia botânica está pejada de inconsistências.

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  4. Interessante! E ficamos a aguardar a explicação de ser o Trifolium subterraneum de todas as plantas deste mundo a mais fascinante!

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