quarta-feira, 30 de junho de 2010

Sobre a ecologia dos Trifolia «trevos» (Fabaceae) anuais

2010 é o ano de todos os trevos. O ano correu-lhes de feição. As chuvas persistentes e o frio deprimiram as gramíneas - os seus mais sérios competidores - no final do Inverno-início de Primavera. O tempo aqueceu em Maio, com muita água no solo, e as plantas do género Trifolium cresceram de forma nunca vista.
Este ano, não só a biomassa de Trifolia é imensa, como parecem ser mais fáceis de encontrar as espécies menos frequentes do género, e.g. T. bocconei, T. ligusticum, T. phleoides e T. leucanthum.
 
Trifolium ligusticum [fotos cedidas por Miguel Sequeira; fantásticas, não são?]. Este trevo caracteriza-se pela presença de pêlos na página superior das folhas, de pêlos erectos (em pé) nos caules, e de inflorescências sésseis (sem pedúnculo, apoiadas nas folhas)

A maioria dos Trifolia indígenas de Portugal - é pouco provável que este género ocorresse nos arquipélagos atlânticos antes da chegada dos europeus - mostra uma marcada preferência por margens de caminhos ou solos húmidos vizinhos de cursos de água. As clareiras de matos e bosques, abertas pelo fogo ou pelos animais, são também um importante habitat primário de muitas espécies deste género. Suspeito que a biomassa de Trifolia seja hoje muito superior à de há 100 anos atrás. Um século de uso de superfosfatos e de redistribuição do fósforo pelos excrementos animais e humanos certamente expandiu os nichos ecológicos das leguminosas.

Em média os Trifolia fixam cerca de 20 kg de azoto por tonelada de matéria seca. Um valor significativo se tivermos em consideração que 100 kg de azoto/ha é um valor referência da fertilização do trigo no mediterrânico, e que facilmente se atingem as 5 t de matéria seca/ha numa pastagem de trevo-subterrâneo. Por outro lado, o nichos ecológicos da grande maioria dos trevos anuais são razoavelmente ricos em nutrientes, entre os quais azoto. Parece então existir um contradição entre as exigências ecológicas dos Trifolia e a sua capacidade de aceder ao azoto atmosférico, fixado por bactérias que colonizam as suas raízes.
As "contradições", as "incongruências" na natureza merecem sempre uma reflexão.
Os nichos ecológicos dos Trifolia anuais são naturalmente ricos em azoto, certo; mas também em fósforo e em outros nutrientes concentrados pelos animais ou pela água. Sabe-se, por exemplo, que vários nutrientes são fundamentais para o funcionamento dos sistemas enzimáticos envolvidos na fixação do azoto atmosférico (e.g. molibdénio). Por outro lado, ao contrário do que muitas vezes é referido na bibliografia, o azoto pode ser favorável aos trevos no início do seu ciclo vegetativo (até ao final do Inverno) porque a simbiose com as bactérias fixadoras de azoto não é imediatamente funcional. Quer tudo isto dizer que os conceitos de planta nitrófila e subnitrófila têm que ser usados com muita cautela.

Estes pequenos pormenores de ecologia, na interface entre a botânica, a fisiologia e a agricultura são absolutamente fascinantes. Desculpem o desabafo: tão ou mais interessantes do que muitas das matérias que enchem, sem grande variação de ano para ano, os livros de ciências dos nossos liceus e escolas preparatórias..

3 comentários:

  1. Muito bom. Gostei da nota final. E vinda de um Professor. Abraço.

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  2. Pois aí está uma reflexão que já me atormentou, e me estava também a fazer confusão quanto a outro caso, o caso de Azolla spp., um pequeno pteridófito aquático que fixa azoto atmosférico também. Fazia-me confusão porque é que esta planta não colonizaria com violência lagos oligotróficos, uma vez que tinha azoto à disposição. O factor limitante pelos vistos é outro.
    Seja como for, tem de haver situações em que a fixação de azoto representa uma vantagem significativa. Talvez ela tenha de facto uma vantagem competitiva importante, devido a fixar azoto, quando está a partilhar o habitat (embora rico em azoto) com espécies como Lemna, que não têm essa capacidade. Se calhar só aí, na competição, essa vantagem se exprime a sério, por causa daquele suplemento adicional de algo que, não obstante, já é tão abundante nesses habitats.

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